“No Brasil, em vez de se colocar o falsário na cadeia, obrigam-se todas as pessoas a provar sistematicamente, com documentos, que não são desonestos. Com isso, pune-se o honesto sem inibir o desonesto, que é especialista em falsificar documentos”. A frase dita pelo ministro extraordinário para a Desburocratização, Hélio Beltrão, em 1981, ainda retrata a realidade brasileira.

Apesar das sucessivas medidas contra a burocratização excessiva – e até mesmo com o incremento tecnológico brutal dos últimos anos – a Administração Pública continua a exigir quantidade absurda de documentos para provar que o cidadão existe; que é ele mesmo que se apresenta ao guichê; que cumpriu com seus deveres cívicos; e que nunca teve problema com a polícia.

Essa dificuldade, herdada do arcabouço burocrático dos colonizadores, mas mantida depois da Independência, em 1822, baseia-se na crença “de que é mais fácil criar exigências e requisitos para a prática de qualquer ato público do que fiscalizar ou coibir eventuais desvios ou fraudes”, conforme explica o senador Armando Monteiro (PTB-PE). Ele é o autor do PLS 214/2014, que deu origem à Lei 13.726/2018, a mais nova medida criada para tentar desburocratizar o Brasil.

Armando Monteiro, autor do projeto que deu origem à lei que simplifica as exigências do poder público (foto: Roque de Sá/Agência Senado)

Depois de 45 dias dedicados à “adaptação”, a lei entrou em vigor no dia 23 de novembro. O texto simplifica atos administrativos de órgãos do governo federal, estadual, distrital e municipal – apoiando-se justamente em princípios de presunção de boa-fé e de veracidade. O mesmo juízo no qual foi instituído o Programa Nacional de Desburocratização, quando, em pleno Regime Militar, há 39 anos, a marca da desconfiança e a obsessão com a fraude já era ultrapassada.

A diretriz mais geral dos dois diplomas, aliás, é muito semelhante, o que gera a impressão de que o país vem andando em círculos sem conseguir uma mudança de costumes, a despeito das imposições de cunho normativo (ver abaixo). Tanto o decreto quanto a lei falam em eliminação de formalidades e exigências cujo custo econômico ou social seja superior ao risco de fraude (ver abaixo).

Lei da Desburocratização

Entre as modificações propostas pela Lei 13.726/2018, destaca-se o fim da obrigatoriedade de reconhecimento de firma e de cópia autenticada. Manda a lei que, partir de agora, o cidadão não precisa ficar horas no cartório, nem despender recursos financeiros para conseguir resolver uma demanda do serviço público. Os servidores dos órgãos federais, estaduais, distrital e municipais estão autorizados a conferirem e comprovarem a autenticidade das assinaturas.

A norma determina ainda que os órgãos e entidades integrantes da União não poderão exigir do cidadão a apresentação de certidões ou documentos expedidos por outros órgãos públicos, com a ressalva para o documento de comprovação de antecedentes criminais. A intenção é que, com o tempo, um banco de dados com todas as informações esteja acessível pela internet.

A substituição de documentos antigos, como a certidão de nascimento pela identidade, também está regulamentada. O título de eleitor só poderá ser solicitado no ato de votação ou para candidaturas políticas.

Lei diminui a exigência de apresentação de documentos ao poder público (foto: Ana Volpe/Agência Senado)

– Não tem lógica pedir para o cidadão ficar guardando numa pastinha vários documentos para entregar ao Estado. Eu tenho um certificado de reservista desde os 18 anos; hoje, eu tenho 45 anos, sou servidor público, tirei passaporte, abri conta bancária e continuava precisando levar esse certificado para todos os lugares. Se o Estado sabe que eu cumpri com meus deveres, por que ele ainda continua exigindo? – questionou o ouvidor-geral da União, Gilberto Valle Júnior, em entrevista à TV Senado.

Tempo perdido

De acordo com o estudo “Fim do processo eterno: cidadãos, burocracia e governo digital”, desenvolvido pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), 33% dos trâmites realizados no Brasil encontram-se na categoria de identidade e registro civil. Seguem-se os procedimentos relativos a educação e saúde (19%); ao pagamento de impostos, seguros e pensões (9%); a programas sociais (9%); a veículos (9%); a denúncias de delitos (3%); a propriedades (3%); a abertura e fechamento de empresas (2%); e outros (12%).

A mesma pesquisa mostra ainda que, no Brasil, um cidadão leva em média cinco horas e meia para concluir um trâmite na Administração Pública.

A empresária Ana Luísa Machado, entretanto, não teve a “sorte” de resolver seu problema em apenas um dia. O pai de Ana Luísa, Antônio Ramos Machado, vendeu um carro em 2013, poucos dias antes de falecer. O comprador não transferiu o documento do veículo para o seu nome, como deveria ter feito.

No inventário, o bem, que ainda está no nome de Antônio, ficou de herança para Glória Machado, mãe de Ana Luísa. Todavia, entre idas e vindas ao Detran, o órgão informou que não é possível transferir o veículo para o nome do comprador sem a cópia do Documento Único de Transferência (DUT) assinado, com firma reconhecida em cartório.

O carro – e até as notificações de infrações cometidas com o veículo – continuam, inclusive, sendo destinadas à Antônio, morto há 5 anos.

– O pessoal do Detran disse que não tem como nos ajudar. Eles nos sugeriram entrar na Justiça, alegando não saber o paradeiro do veículo – conta Ana Luísa, que teme os transtornos e a morosidade de um processo judicial.

Judicialização

A judicialização de conflitos no âmbito administrativo, a propósito da Lei 13.726, foi tema de debate no Seminário “Desburocratização do Poder Judiciário”, realizado em Brasília no dia 29 de novembro, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

(fotos: G.Dettmar/Ag.CNJ)

Presente ao encontro, o senador Antonio Anastasia (PSDB-MG), falou mais especificamente sobre a judicialização dos medicamentos. O relatório Justiça em Números 2017, do CNJ, registra mais de 1,3 milhão de processos relacionados à saúde –mais de um terço deles tendo como objeto a concessão de tratamentos e/ou fornecimento de medicamentos pelo SUS.

Na visão do parlamentar, esse é um exemplo típico de como a burocracia contamina o Executivo e o Judiciário.

– É uma burocracia equivocada do Executivo, que não consegue resolver o problema de maneira adequada. Isso acaba por se desdobrar numa quantidade exagerada de procedimentos judiciais, que, muitas vezes, infelizmente, levam ao óbito dos cidadãos. E isso causa na sociedade uma imagem de ineficiência, desleixo e inoperância do poder público como um todo, tanto do Executivo como do Judiciário em relação àquela prestação de serviço, que é o acesso à saúde – observou Anastasia em seu pronunciamento.

Para Anastasia, a burocracia excessiva traz uma imagem de ineficiência para o setor público (foto: Moreira Mariz/Agência Senado)

No entender do doutor em direito processual civil Luiz Rodrigues Wambier, a dificuldade para a obtenção de documentos dos próprios órgãos públicos se reflete no aumento dos processos e, consequentemente, na lentidão das decisões:

– Há ainda um número muito grande de ações de exibição de documentos contra órgãos públicos que se negam a fornecer ao cidadão a documentação que ele necessita. Dessa forma, entupimos as “veias do Judiciário” com esse mau colesterol.

Para Wambier, a desburocratização está intimamente relacionada ao número de processos judiciais.

– Na medida em quem a administração pública se permita deixar permear por uma nova cultura, certamente, serão menos mandados de segurança para obtenção de documentos que estão de posse do poder público – explicou Wambier.

Vida privada

Um exemplo de medida que facilita a vida dos cidadãos e desafoga o Judiciário é a Emenda Constitucional 66, de 2010, que acelerou e desburocratizou o processo de divórcio no Brasil. Desde então, o casal que queira desfazer o matrimônio não precisa mais requerer a separação judicial e ainda esperar um ano para obter o divórcio ou comprovar que já está separado de fato por pelo menos dois anos.

Nessa mesma linha, o parlamento aprovou o PLS 155/2004, que deu origem à Lei 11.441/2007, que regulamenta a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa. Ou seja, se ambas as partes estiverem de acordo, o trâmite é realizado em cartórios.

Com origem um pouco mais recuada, o Código Civil de 2002 possibilita alterar o regime de bens após o casamento. No entanto, o procedimento ainda deve ser requerido judicialmente por ambos os cônjuges desde que a alteração não cause prejuízo a terceiros.

Esse procedimento pode avançar. Está em análise na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado, o PLS 69/2016, que regulamenta essa dispensa da necessidade de juiz no chamado pacto pós-nupcial, admitindo a mudança de regime de bens por escritura pública. Ou seja, a alteração do regime de bens do casamento poderá ser feita por meio de requerimento nos cartórios.

Senado analisa proposta para permitir que o regime de bens do casamento possa ser alterado em cartórios (foto: Ana Volpe/Agência Senado)

Na opinião da senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR), é importante aprovar medidas de desburocratização:

– A burocracia em excesso só traz empecilhos e custa mais caro. A gente tem que ter mecanismos de fiscalização de todos os processos públicos, mas isso não significa aumentar a papelada. Porque papelada e ritos não são garantia de transparência ou de boa condução de processos.

Dificuldade de implementação

Já à época do Programa Nacional de Desburocratização, estava claro para Hélio Beltrão que uma das saídas para eliminar muita burocracia seria “descentralizar decisões e eliminar controles excessivos”.

A solução para o problema, no entanto, não é simples. De acordo com o jornalista Hélio Doyle, que assessorou Beltrão, duas das maiores dificuldades enfrentadas pelo ministro foram a resistência dos cartórios, que não queriam abrir mão de poder, e a descrença da sociedade no novo.

Hélio Beltrão comandou o Ministério da Desburocratização entre os anos de 1979 e 1983 (foto: Orlando Brito)

Esses empecilhos persistem, segundo o senador Armando Monteiro. Para o parlamentar, o Brasil tem uma profusão de leis, o que dificulta o cumprimento das normas.

– Têm leis que são cumpridas e leis que não são. Para que a Lei de Desburocratização seja cumprida, primeiro, é importante que seja divulgada, segundo, é preciso que o cidadão exija o seu cumprimento – afirmou.

Essa complexa adaptação foi levada em conta pelo presidente da República, Michel Temer, quando vetou o artigo que determinava a entrada em vigor da lei na data de sua publicação. O presidente ponderou no sentido de que, por ter “um amplo alcance” e afetar a relação dos cidadãos com o poder público, em atos e procedimentos administrativos, o prazo de 45 dias seria necessário para divulgação e adequação dos processos e sistemas de trabalho.

Mesmo assim, o prazo não parece ter sido suficiente. Por enquanto, o que há é mais expectativa do que uma certeza de que a lei entrará plenamente no dia a dia do brasileiro. Opiniões cautelosas sobre a efetivação da lei foram colhidas, por exemplo, em um cartório e no Departamento de Trânsito do Distrito Federal quando apresentaram-se a notários e atendentes perguntas sobre essas duas instituições da burocracia nacional: a cópia autenticada de um documento e a assinatura considerada como idêntica à da pessoa que o assinou.

Cartórios e órgãos públicos ainda têm dúvidas sobre cumprimento da lei (foto: CNJ e José Lins)

No canal de atendimento do Detran (telefone 154), quando se pergunta sobre os documentos necessários para a transferência de um veículo, os atendentes são claros: Carteira Nacional de Habilitação (CNH), Carteira de Identidade (RG), CPF e o Documento Único de Transferência (DUT) preenchido e com firma reconhecida em cartório, além do comprovante de agendamento de vistoria.

Questionado por meio da assessoria de imprensa, o órgão afirmou que a Lei 13.726 não alcança as transferências de veículos: “A Lei 13.726 de 08 de outubro de 2018 trata da simplificação dos procedimentos internos, e não determina a isenção do reconhecimento de firma e sim a simplificação de procedimentos desnecessários e repetitivos, como definido no artigo abaixo [1º]. O que não se aplica ao caso da transferência de veículo”.

Conforme ainda segundo a assessoria do Detran-DF, o órgão “já simplificou muitos dos procedimentos, como por exemplo, no caso de indicação de condutor infrator, em que não é necessário o reconhecimento de firma”. E promete continuar “trabalhando os seus procedimentos para, se possível, suprimir a obrigatoriedade do reconhecimento da firma também no Certificado de Registro de Veículo”. O caminho, indica a mensagem da assessoria de imprensa é a consolidação de “um banco de dados biométrico que facilitará a vida do cidadão no âmbito do Distrito Federal”.

No passado, as transferências de veículos eram feitas nos guichês do Detran, com a presença do vendedor e do comprador. O comparecimento das duas partes foi depois transferido aos cartórios, ficando a obrigação da transferência, no Detran, sob o encargo do comprador. A medida, no entanto, gerou uma série de problemas para os vendedores que não têm, por qualquer motivo, uma cópia autenticada do DUT pelo cartório, quando os compradores não fazem a transferência do veículo, deixando que multas e outras punições recaiam sobre os antigos proprietários dos veículos. A solução para estes tem sido recorrer à Justiça.

Para dirimir dúvidas como essas, foi lançado em janeiro um canal online do Governo Federal, o Simplifique!, para que os cidadãos sugiram melhorias, identifiquem falhas e questionem a exigência de documentos e procedimentos requeridos pelas repartições. A ferramenta está ativa para reclamações, solicitações e denúncias de atividades desenvolvidas pelos órgãos da União. O canal também já está disponível a cinco estados e 870 municípios.

– Qualquer cidadão pode fazer denúncia de um órgão que esteja exigindo documentos desnecessários ou aumentando a burocracia, através do “simplifique.gov.br”. O sistema faz controle de prazo, e o cidadão recebe protocolo e estipula um prazo para a resposta àquela demanda. É estarrecedor um cidadão na frente de um servidor público, de porte dos seus documentos, e sua palavra não ter validade – explicou o ouvidor-geral da União.

Aspecto securitário

Se por um lado, o fim da obrigatoriedade da firma reconhecida e de cópias autenticadas irá agilizar o processo e diminuir os custos– e ainda dar um voto de confiança ao cidadão – a partir da presunção de boa-fé – por outro, o fim das formalidades ou exigências pode se tornar um problema, na opinião do tabelião do 4° oficio de Notas do Distrito Federal, Evaldo Feitosa. Ele conta que os casos de estelionatários tentando forjar assinaturas são recorrentes e, com a falta de qualificação dos funcionários públicos para identificar esse tipo de fraude, o cidadão pode terminar lesado.

Na defesa do caráter securitário dos cartórios, Evaldo alega que esses órgãos têm responsabilidade subjetiva em casos de falsificações. Desse modo, na interpretação dele, se o notário ratificar uma informação falsa, precisará arcar com as consequências, o que não estaria previsto para os servidores públicos responsáveis por conferir assinaturas.

– Dentro do serviço de reconhecimento de firma, está embutido o seguro social, que representa o aspecto securitário. Ou seja, quando o cidadão faz um trabalho no cartório, o tabelião fica responsável. Então, se o cidadão vier reconhecer a firma de um carro e der problema, e a pessoa não for dono do carro, por exemplo, o cartório é obrigado a ressarcir a pessoa lesada – afirma.

Em entrevista ao programa Cidadania, da TV Senado, o ouvidor-geral da União, Gilberto Waller Júnior, fala sobre os princípios que a nova Lei de Desburocratização traz para as relações do cidadão com o Estado.